ICONS – Something’s OFF

Abloh, Virgil

ICONS – Something’s OFF

2021 Köln
Taschen
Editora

Isto é tudo menos um livro. Dizer que é uma peça artística não é suficiente. Na fibra destas 352 páginas lê-se a concretização dos ideais com que Virgil Abloh sempre trabalhou, naquilo que é a desconstrução e construção de uma época. Do pormenor do stitching em sneakers à mais subtil separação das páginas da lombada, o design afirma-se como omnipresente – em marcas como a Louis Vuitton, Off-White™ ou PYREX VISION – unindo culturas em palcos que nunca antes a elas foram associados. Uma ode ao corpo humano, o respeito que por ele se deve ter e, consequentemente, o valor que se deve dar à sua existência em coletivo. Na essência, este é o mote emanado ao longo de todo o processo de construção de 10 das silhuetas mais icónicas da Nike que, aqui, em ICONS – Something’s OFF, é partilhada em tom de uma conversa entre mestres e aprendizes ou, melhor ainda, de intimidade entre amigos.

Construir algo inédito não é fácil, talvez seja até impossível, diria Abloh. A ligação entre o passado e o futuro é demasiadamente importante na sua linha de pensamento, estando absolutamente ancorada às suas referências dadaístas, brutalistas e expressionistas. Esta herança humana e este entrelaçar de movimentos artísticos são a tela em branco para que a relação do design com o passado, com o objetivo de lançar uma existência, seja pincelada. Sejam motivos arquitetónicos balançados com ritmos oriundos de um DJ set de techno ou até mesmo um kickflip com uma pitada de catwalk. Tudo isto é informação disponível que pode ser usada para marcar um par de sapatos ou uma coleção inteira como esta. É uma questão de equilibrar tudo, não é à base de se ser super redutivo ou super aditivo; um twist de 10 por cento é o que Abloh diz ser suficiente para manter a integridade de um design icónico conhecido por tudo e todes, colocando aquela ervilha debaixo do colchão que é suficiente para impor um desafio e tornar tudo muito mais interessante. 

De facto, as silhuetas trabalhadas nesta coleção têm a sua relevância no mercado logo desde o seu início, numa parceria entre a Nike e o basquetebolista Michael Jordan, em 1984, em que o esperado lucro de 3 milhões de dólares com vendas de Air Jordans foi ultrapassado por uns meros 126 milhões. Hoje em dia, tal rendimento é conseguido em 5 horas. O hype à volta destes pares é tanto que os produtos são esgotados no mesmo minuto em que são lançados, existindo milhares de lojas especializadas na revenda de sneakers com paredes enormes repletas de sapatos como a Stadium Goods®, que por vezes até se tornam ringues de luta livre em que pessoas lutam por estes produtos, para no fim conseguirem mostrar o que têm, muitas vezes construindo autênticos altares para os sapatos, tornados no suprassumo da moda. Assim, ICONS tinha tudo para ser um daqueles career endings para Virgil e para as ações da Nike Inc. Uma peça como os Air Jordan I, com potência suficiente para fazer voar um homem de dois metros e com uma colorway – uma diferente composição de cores para o mesmo design – reconhecível a quilómetros de distância teria, nas suas costuras, espaço para um redesign? Ou que uns míticos Air Max 90 ’s teriam pulmões grandes o suficiente para fazer respirar outro fit? Quem diria que um x-ato tivesse a capacidade de criar superfícies tão cruas. O carácter elementar, até mesmo DIY, em cada um dos sneakers apresentados ao longo destas folhas remete um pouco para a exposição de um por detrás das cenas de cada um dos pares. Tudo isto é muito mais que um raio-x a um par de sapatos: refletem-se desta maneira os valores de transparência de um designer ou de uma empresa para com o seu público, que são muito importantes no sucesso de um produto.

É bom reconhecer o que calçamos. Acima de tudo, precisamos de compreender que aquilo que o nosso corpo usa e transporta é vital. Esta ligação com o público é das coisas mais importantes no trabalho de um designer. Em ICONS, o processo de design é exposto sem precisar de textos sobre este e aquele porquê. A paisagem de imagens, sejam elas publicidade antiga dos pares para os situar no espaço ou fotografias de teste para situar os produtos na coleção, não deixa que o fio condutor se perca com uma cronologia muito bem definida, que ainda é acompanhada por mensagens trocadas entre Virgil e a sua equipa em que se refletem ideias e colocam hipóteses sobre o projeto.

Consequentemente, dão-se as ferramentas para que se inspirem gerações a criar sem medos, de forma rebelde e que se afirmem como o combustível de um mundo novo e melhor. Especialmente a juventude, que, para Virgil, é o motor ideal para o seu trabalho: “Tudo o que eu faço é pelo meu eu de 17 anos”. É, no fundo, educação. Em cada um destes 10 pares mostram-se as pegadas que indicam o caminho para que os jovens possam unir os seus gostos e as suas ideias e, assim, assumirem o leme de toda a cultura. Sim, o trabalho que o designer aqui apresenta muito provavelmente não é feito diretamente para os jovens, já que esta porção etária é provavelmente a que tem menos capacidade financeira para conseguir um par do designer. Porém, é inspirada e é feita por esta fatia da sociedade.

É uma aposta que o design está a fazer pela sua integridade futura. É importante a próxima geração entender que para construir uma peça, seja escultórica, musical, de roupa ou arquitetónica, é necessário um plural. A experiência que se integra com a juventude e, talvez ainda mais necessário, juventude que se integra com juventude. O takeover de uma geração seguinte é sempre certo e há que aceitar isso. Mas isso é como encontrar uma agulha num palheiro, é raro encontrar vozes de peso que queiram o melhor da próxima existência e que ajudem isso a tornar-se real. O tempo de mudança aconteceu, está a acontecer e vai continuar a fazer o mesmo. Esta ideia de partilha sem qualquer tipo de desejo de retorno é absolutamente importante. Clichê ou não, o trabalho de equipa é fundamental e com certeza que dá frutos. Com tanto em tão pouco tempo, com uma morte causada por um cancro mantido em segredo, Virgil levanta o copo em ICONS – Something ‘s OFF e faz um brinde à união, à longevidade e à juventude, para que todes possamos beber um pouco do seu desejo e dar coragem às nossas cores.

1 Marcas em que Virgil Abloh trabalhou, sendo a PYREX VISION a primeira marca criada pelo designer. 
2 Abloh produz música techno que se interliga com estilos como house, hip-hop e rap, tendo singles e sets publicados no Youtube e no SoundCloud, como este: https://www.youtube.com/watch?v=zDyjapTh5Pk
3  As origens do designer e a sua ligação com a cultura jovem nascem sobretudo com o andar de skate pelas ruas de Chicago quando era mais novo.
4  Passarela onde modelos caminham para expor peças de roupa em desfiles de moda.
5  Michael Jordan foi o grande ajudante da Nike na luta pelo topo do mercado. O modelo que ambos criaram com as cores da equipa Chicago Bulls, os Air Jordan – Chicago, vermelhos e brancos, foi a catapulta daquilo que se viria a tornar numa febre louca por pares de sapatos.
https://fadeawayworld.net/nba-media/in-1984-nike-hoped-to-make-3-million-in-jordan-sales-during-4-years-in-2022-they-make-3-million-selling-jordans-every-5-hours
6  Hype é o nome dado à moda cultural do consumismo contemporâneo, em que se prioriza a busca pelo produto “da berra”. Neste caso, o verbo é usado no sentido de loucura, excitação, estar em pulgas.
7  Certos pares de sapatos são muito difíceis de arranjar devido à grande procura. Isso fez com que a revenda se tornasse num grande negócio, com lojas a (re)vender peças a preços muito mais elevados que o normal que as pessoas estão dispostas a pagar dada a raridade do produto.
8  A loucura é tanta que pessoas lutam entre si por um par de sapatos. Esta importância no mercado pode ter consequências graves como esta, em que os produtos vão mais além que eles próprios e se tornam em símbolos sociais, de poder até. https://www.dailymail.co.uk/news/article-2527988/Sneak-attack-Pandemonium-latest-Air-Jordan-sneakers-sale-fights-break-stores-country.html
9  A mostra da posse destes produtos tornou-se num “conteúdo” por que muitos youtubers são conhecidos. https://www.youtube.com/watch?v=7281h1kfmLM

Recensão de:
Tomás Santos

Licenciatura em Ciências da Arte e do Património, FBAUL

Disciplina: Estudos em Design, 2022-23