Neuromancer, a magnum opus de William Gibson, abriu as portas do mundo à cultura cyberpunk no ano de 1984, ao narrar a sua negra visão de um possível futuro para as sociedades urbanas, altamente doentes devido à alta tecnologia, droga, poluição, falta de educação, corrupção e crime organizado. Na sua íntegra, este livro é uma dura mas aberta crítica aos efeitos do sistema capitalista: devido às atitudes corruptas e ditatoriais de grupos corporativos empresariais, o proletariado é explorado ao extremo. Enquanto os poderosos possuem todo o luxo existente, os miseráveis perdem o que resta da sua humanidade e utilizam a tecnologia em todo o tipo de crimes para sobreviver.
O termo cyberpunk deriva da junção das palavras cibernética e punk. Essa é a razão para a grande maioria das personagens de Neuromancer – e a maior parte dos universos cyberpunk – terem algumas partes do seu corpo substituídas por próteses cibernéticas e praticarem um estilo de vida nitidamente punk, tendo uma atitude cínica e de forte desprezo perante a lei e a autoridade, perpetuando atos irresponsáveis e violentos, perseguindo uma filosofia de vida extremamente semelhante à do niilismo. É habitual aplicar ao cyberpunk a máxima “high tech, low life”.
Quase uma década antes da abertura ao público da World Wide Web (10), muitos anos antes da globalização como a conhecemos e do uso da tecnologia de ponta, deep learning (11) e realidade virtual no nosso quotidiano, Gibson descreveu vividamente os efeitos do contacto da sociedade com conceitos extremamente semelhantes aos referidos sem nunca ter interagido com algum. Gibson também é o autor de termos tais atualmente conhecidos como “cyberespaço”, “matrix” e “jacking-in” (12).
Foi graças ao impacto desta obra que o cyberpunk, inicialmente considerado um mero subgénero literário da ficção científica, evoluiu nos últimos quarenta anos para um género muito superior, sendo atualmente um dos mais populares no mundo das artes, com uma presença muito importante no cinema, arquitetura, computação gráfica, jogos, música, desenho, equipamento e design de moda, publicitário e tipográfico, entre outros.
Devido à descrição altamente visual dos cenários e personagens, ao longo da obra somos levados a conhecer as inspirações que caracterizaram e cimentaram o aspeto cyberpunk que conhecemos. Entre os mesmos podemos destacar: a utilização massiva de luzes elétricas – particularmente, néon azul e vermelho – e hologramas por toda a cidade, principalmente com motivo publicitário. No livro conseguimos visualizar essa característica em passagens como “where you couldn’t see the lights of Tokyo for the glare of the television sky, not even the towering hologram logo of the Fuji Electric Company” (p. 4), “holograms of Wizard’s Castle” (p. 5), “each panel framed in red neon” (p. 4) e “by day, the bars down Ninsei were shuttered and featureless, the neon dead, the hologram inert” (p. 4), tal como no recente jogo indie cyberpunk francês Stray, onde os designers Alexandre Brodu, Viv e Koola optaram descrever a ação “amidst the detailed, neon-lit alleys of a decaying cybercity and the murky environments of its seedy underbelly” no website do jogo.
As multidões em constante movimento caracterizam a sobrepopulação e o anonimato humano nas grandes cidades: vidas comuns desvalorizadas, tal como Gibson descreve: “Night City was like a deranged experiment in social Darwinism […]. Stop hustling and you sank without a trace” (p. 4) e “Biz here was a constant subliminal hum, and death the accepted punishment for laziness, carelessness, lack of grace, the failure to heed the demands of an intricate protocol” (p. 5).
As próteses cibernéticas são um dos itens mais explorados na ficção cyberpunk e, como foi referido acima, muito comuns em Neuromancer. No livro, existem algumas personagens relevantes com implantes cibernéticos, tal como Ratz que possui um braço cibernético ou Molly Millions que tem o corpo modificado para ser uma máquina de matança, com unhas afiadas feitas de metal e olhos de vidro para melhorar a sua visão. As próteses cibernéticas também podem ser diretamente ligadas à disciplina do design de equipamento, nomeadamente ao projecto de aplicações no campo da medicina para próteses ortopédicas ou em mecanismos de substituição para funções motoras em indivíduos com mobilidade reduzida, os quais traduzem impulsos eletromagnéticos da esfera cerebral em comandos dessas avançadas próteses ou usam o movimento ocular da íris para os controlar. No anime Cyberpunk: Edgerunners, inspirado pelo videojogo Cyberpunk 2077, a ação decorre em Night City – um nome muito possivelmente inspirado em Neuromancer – e os implantes cibernéticos são requisitos para se poder sobreviver. No entanto, estes não são baratos, e da mesma maneira que o implante pode salvar a pessoa, este também pode causar a sua morte, devido a complicações entre o hardware e o corpo humano.
A chuva e a escuridão são características habituais nos cenários, ambiente e sensações cyberpunk, uma vez que transmitem a ideia de um ar poluído pelas fábricas das grandes corporações e a escuridão de um mundo sem humanidade. A nível visual, também torna mais evidente a reflexão das luzes néon nas poças de água. Uma das cidades mais importantes da obra é Night City, onde o céu é descrito como “poisoned silver sky” (p. 4) e onde o mercado negro é muito popular. Como Gibson descreve, “The sky above the port was the colour of television, tuned to a dead channel” (p. 1).
A inovação tecnológica e utilização especulativa da tecnologia inclui hologramas, como referido acima, mas também espaços virtuais como “the matrix […], bright lattices of logic unfolding across that colorless void…” (p. 2) ou clones das próprias personalidades dos personagens, como a Lady 3Jane. Outros exemplos incluem a utilização de criogenização durante trinta anos em John Ashpool, a conservação das memórias de McCoy numa ROM – Read Only Memory – e a criação de duas personagens, Wintermute e Neuromancer, como dois exemplos de inteligência artificial extremamente evoluída . No filme Matrix, de 1999, a história muda drasticamente quando percebemos que a realidade era apenas uma simulação neural criada por formas de inteligência artificial muito avançadas. Os seres humanos, que viviam aparentemente uma vida como a que conhecemos, eram na verdade cultivados em cápsulas onde a sua energia era utilizada como fonte para a Matrix, um sistema que controlava as suas consciências e permitia-lhes existir dentro da simulação.
Neuromancer também é marcado pelo existencialismo e pela ponderação sobre do lado negro da tecnologia: quais são as consequências da tecnologia na humanidade? Será que a tecnologia nos torna menos humanos? Como definimos o que é ser humano? Poderá uma AI ser mais humana que um humano? Em Blade Runner, o filme de Ridley Scott, a personagem Rachael acredita ser humana mas é na verdade uma replicante – uma androide de aparência humana – com memórias humanas implantadas concebida enquanto experiência científica pelo seu criador. Confrontada com a verdade, Rachael tenta provar ser humana falando das suas memórias quando era criança, mas quando percebe que é realmente artificial, começa a chorar.
O Japão é outra inspiração de Gibson para uma metrópole global de um futuro próximo: nos anos 1980, a cultura deste país em forte ascensão económica – especialmente no setor do consumo tecnológico – começava a introduzir-se na cultura pop americana. Em romances como Neuromancer é feita uma romantização da vida urbana japonesa, com a descrição de uma comunidade muito fechada a estrangeiros que circula por estradas muito movimentadas, tem estilo de vida atarefado e está em movimento permanente em cidades com alta densidade populacional compostas de vastos arranha-céus com múltiplos ecrãs publicitários. Numa entrevista à revista Time em 2001, Gibson inclusive afirma que “It was not that there was a cyberpunk movement in Japan or a native literature akin to cyberpunk, but that modern Japan simply was cyberpunk”.Podemos dizer que Gibson foi para o cyberpunk o que Tolkien foi para a fantasia: da mesma maneira que toda a fantasia moderna é inspirada no fantástico de Tolkien, o género cyberpunk que conhecemos deve-se à influência de Neuromancer e Gibson. Apesar da obra estar prestes a completar 40 anos de existência, numa época onde tudo é imediato e passageiro, é notável como podemos encontrar nesta obra a génese do imaginário que hoje em dia apela ao estilo cyberpunk, em todas as disciplinas da arte, e onde o design não é excepção.
10 Sistema de documentação de documentos em hipermédia que são interligados e executados na Internet
11 Ramo da Inteligência Artificial – especificamente Aprendizagem de Máquina – baseado em um conjunto de algoritmos que tentam modelar abstrações de alto nível de dados usando um grafo profundo com várias camadas de processamento, compostas de várias transformações lineares e não lineares.
12 Apreender ilegalmente dados de um computador com o intuito de roubar informações ou comprometer a segurança do sistema.
Recensão de:
Raquel Cardoso
Licenciatura em Engenharia Informática e de Computadores, IST
Disciplina: Estudos em Design, 2022-23